Cemitérios de SP cobram até dez vezes mais para reenterrar mortos da covid.
A mãe da jornalista Ludmila Pizarro foi uma das quase 47 mil vítimas fatais da covid-19 em São Paulo no primeiro ano da pandemia. No dia de seu falecimento, 20 de dezembro de 2020, o serviço funerário da cidade fez 16 sepultamentos por hora. Ela foi enterrada no cemitério Vila Formosa, na Zona Leste, o maior do Brasil, que ficou famoso internacionalmente com fotos de centenas de covas improvisadas lado a lado. Com o grande aumento do fluxo, o local se especializou em enterros rápidos, que duravam poucos minutos - e um gerador chegou a ser instalado para permitir o trabalho noturno.
Três anos depois, em dezembro do ano passado, Pizarro teve que voltar ao Vila Formosa. Pela lei, os corpos sepultados em covas públicas precisam ser exumados após esse período para dar lugar a outros. Nesse momento, a família decide se os restos mortais irão para um jazigo particular, se serão cremados ou encaminhados para o ossário geral, onde não têm identificação.
No entanto, a jornalista foi informada de que o corpo de sua mãe ainda não estava em condições de ser retirado da terra. Ela, assim como todas as outras vítimas da covid naquele momento, foi enterrada dentro de um saco especial lacrado para isolar o vírus e evitar a contaminação do ambiente.
O saco, porém, impediu a decomposição total do corpo, uma condição necessária para a exumação ser feita. Quando os funcionários do cemitério abriram o saco, constataram que o corpo ainda estava inteiro. Eles fecharam o saco de novo, e o corpo voltou a ser enterrado.
"É como se fosse o segundo enterro da minha mãe. É um processo emocional pesado", disse a jornalista. "Só vou ter os restos mortais dela em 2027. E ninguém sabe se ele vai estar finalmente decomposto até lá, ou se vai precisar ficar mais outros três anos."
Pizarro reclama que teve que pagar R$ 845 apenas para o corpo de sua mãe ser "tirado e colocado de novo na terra". O valor corresponde a R$ 523 de "inumação de corpo intacto" (que significa enterrar o corpo não decomposto) e R$ 322,32 de taxa de exumação. "Eles sabiam que provavelmente não seria possível fazer a exumação. Assim como o meu caso, vi outras famílias passando pela mesma situação", ela diz.
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias de São Paulo (Sindsep), um caso nas mesmas condições antes da privatização dos cemitérios teria custado aos usuários cerca de R$ 181,97.O valor é referente apenas à reinumação, já que a exumação não seria feita se o corpo não estivesse em condições. Hoje, após a concessão, o custo cobrado em algumas unidades pode chegar a quase R$ 2 mil.
Isso quer dizer que o preço ficou dez vezes mais caro do que antes da privatização. "Com a concessão dos serviços, houve um aumento absurdo dos preços. E quem paga é o cidadão, que não tem escolha", diz João Batista Gomes, secretário de assuntos jurídicos, econômicos e pesquisa do Sindsep.
O serviço funerário da cidade foi privatizado em março de 2023 pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A concessão, de 25 anos de duração, foi entregue a quatro empresas: Consolare, Velar, Cortel e Grupo Maya. Elas deveriam reformar e melhorar os serviços das unidades, mas, um ano depois, há relatos de problemas de infraestrutura e segurança e preços muito mais altos.
Mortos por covid são colocados de volta em sacos sem protocolo
A Agência Pública esteve no Vila Formosa durante uma manhã de sábado, em fevereiro deste ano, e presenciou pelo menos três famílias que precisaram desembolsar valores altos na tentativa de exumar um ente querido falecido por covid, mas tendo que voltar a enterrá-lo.
A movimentação tem aumentado nas últimas semanas à medida que se completam os três anos do período mais mortal da pandemia no país, entre março e abril de 2021, antes da aplicação massiva das vacinas. A grande maioria das pessoas não tem dinheiro para bancar enterros caros e depende do serviço funerário que era oferecido pela prefeitura.
Uma senhora, acompanhada de sua filha e uma neta, tentava entender as taxas cobradas para exumar o corpo do marido. O valor, R$ 845, é mais da metade do seu salário mensal. A prefeitura oferece o serviço de forma gratuita para pessoas de baixa renda ou doadores de órgãos, mas a idosa, que não quis se identificar, não se enquadra em nenhuma das categorias para gratuidade. A sua renda mensal per capita é de R$ 750, mas para obter o benefício teria que ser de no máximo R$ 706. E, na época, era proibida a doação de órgãos de pessoas mortas por covid. "Sinto como se ele tivesse morrido hoje de novo", disse.
A reportagem da Pública pediu informações à empresa por WhatsApp, como se fosse uma cliente precisando do serviço. Uma funcionária do Vila Formosa disse que, de um ano para cá, "não está saindo ninguém de covid" - ou seja, nenhum dos corpos de vítimas da doença está suficientemente decomposto para exumação. "Eles só perderam a pele. Ficando dentro do saco ainda vai demorar muitos anos", comentou.
Ludmila Pizarro precisou pagar R$ 845 para desenterrar e exumar a mãe, que voltou a ser enterrada em seguidaImagem: Arquivo Pessoal