“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” Forte, né? Escrita em 13 de maio de 1958 por Carolina Maria de Jesus.
Grande Carolina! Eterna! Mulher negra, neta de escravizados, analfabeta, favelada, catadora de papel, dona de uma alma sensível e sábia: fez-se, assim, uma das artistas mais importantes do Brasil.
“Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visitas; a Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” — Quarto de despejo (1960), 10 mil exemplares vendidos em sete dias, traduzido para treze idiomas e distribuído em mais de quarenta países.
Essa é a importância de Carolina, nascida em Sacramento, zona rural das Minas Gerais de 1914, leitora e escritora desde a infância (quando frequentou o Colégio Allan Kardec durante os anos de 1923 e 1924). Em 1930, mudou-se para São Paulo e trabalhou como empregada doméstica até engravidar do primeiro filho, quando foi mandada embora pela família para a qual prestava serviços.
Carolina começou a, então, catar papel e lata para conseguir dinheiro. Ela guardava cadernos bons para registrar sua sobrevivência diária e extravasar angústias, revoltas. 13 de maio de 1958, ela escreveu:
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome!”
Carolina não suportava a vida na favela do Canindé, no centro da capital paulista, às margens do Tietê; mas ela se dava ao luxo de sonhar em meio ao lixo. Apelidada “Língua de Fogo” pelos vizinhos, ela falava tudo o que queria e pensava e se afirmava escritora antes de qualquer publicação. Na escrita, ela encontrou alento. A literatura foi seu “melhoral” para as dores da pobreza, da fome e da solidão.
“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.”
Numa praça do Canindé, o talento de Carolina fora descoberto por um jornalista, o Audálio Dantas. Ela discutia com uns moleques no parquinho e os ameaçou de colocar o nome deles em seu livro. Curioso, Audálio quis saber que livro era esse e, a partir disso, Carolina conheceu o sucesso e a ascensão social. Virou matéria para as mídias da época, assunto principal entre os escritores e intelectuais brasileiros, como Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, etc. Quarto de Despejo foi traduzido para treze idiomas, espalhado pelo mundo e lido até pelo presidente dos Estados Unidos — John F. Kennedy, 1961. Mudou-se para Santana, bairro nobre da zona norte de São Paulo, e lançou outros livros, naturalmente.
O reconhecimento durou pouco ou quase nada. Carolina era mera curiosidade, artigo de consumo das mídias, descartada quando a moda passou. Morreu aos 63 anos num sítio em Parelheiros, esquecida pela indústria editorial, mas sua magnitude ressurge no início do século XXI com a seguinte indagação: por que há silenciamento e apagamento dos autores pretos, pobres, favelados?
Eu convido o leitor a ler Carolina Maria de Jesus e refletir o porquê. E faço, ainda, outra pergunta: por que 1958 ainda existe em 2023? A realidade das comunidades marginalizadas é, ainda, igualmente faminta e violentada. Por quê? Trago uma última reflexão de Carolina do dia 16 de maio de 1958:
“... Eu quando estou com fome quero matar Jânio¹, quero enforcar Adhemar² e queimar o Juscelino³. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.”
De onde vem a violência?
1: Jânio Quadros, prefeito e governador de São Paulo nos anos 1950.
2: Adhemar de Barros, influente político brasileiro entre 1930 e 1960.
3: Juscelino Kubitschek, 21.º Presidente do Brasil, entre 1956 e 1961.
Le Monde Diplomatic: https://diplomatique.org.br/
Acervo/Estadão: https://www.estadao.com.br/acervo/